Gramática da Fantasia

Crianças têm a facilidade de recriar o mundo a sua volta.

Quantas vezes elas desenham sem esperar impressionar, apenas pelo ato de criar? E quantas vezes são frustradas por comentários apontando “erros”, direcionando, “ensinando o certo”?

Não é raro ouvir um “tem um monstro no meu quarto”, ou a transformação de uma indefesa lagartixa em um voraz jacaré.

Picasso tem uma das mais lindas afirmações, quando diz que levou uma vida inteira para aprender a desenhar como as crianças*.

Há alguns anos, li esse post no blog do Hiro, responsável pelas folhas de bandeja do Mc Donalds, no qual citava seu “livro de cabeceira”, Gramática da Fantasia, de Gianni Rodari.

Gianni mudou meu jeito de pensar e criar pra sempre.

Ele diz:

“Um dia, nos Frammenti de Novalis (1772-1801), encontrei algo que dizia: ‘Se tivéssemos uma Fantasia, assim como temos uma Lógica, estaria descoberta a arte de inventar’.” (RODARI, 1982, p. 9)

Em seu livro, Rodari aborda o mundo das crianças, como criam, recriam, transformam, recombinam elementos e chegam a resultados que nos impressionam pela simplicidade com que o fazem. E ele também ensina algumas técnicas interessantes, resultado dos seus anos de estudo e pesquisa.

Elas não imaginam. Fantasiam.

“Ambas são, para ele [Hegel], determinações da inteligência: mas a inteligência como imaginação é simplesmente reprodutiva; como fantasia é, ao contrário, criativa. Assim, nitidamente separados e hierarquizados, os dois termos servem muito bem para sancionar certa diferença racial, quase fisiológica, entre o poeta (o artista) capaz de fantasiar e o homem comum, vil mecânico, apenas capaz de imaginar, servindo-se da imaginação com objetivos meramente práticos, de deitar-se quando está cansado e de sentar-se à mesa quando sente fome. A fantasia na categoria A, a imaginação na categoria B…” (RODARI, 1982, p. 161)

As crianças se comunicam fantasiando o simples, transformando a rotina em algo surpreendente, cheio de aventuras e mistérios a serem descobertos.

Conforme crescemos, mudamos nosso discurso, como transmitimos mensagens para o outro. Mas em nenhum momento, deixamos de fantasiar. O que muda é o objetivo do que fantasiamos e como o fazemos, bem como o contexto, afinal, o mundo de uma criança é muito diferente do de um adulto.

A maneira que Rodari descreve a criatividade se assemelha, em vários aspectos, com a semiótica, como por exemplo na desconstrução do signo e na busca pelo seu entendimento conforme o contexto, no caso, as criações das crianças em seu mundo.

“A mãe que fingia enfiar a colher na orelha aplicava, sem saber, um dos princípios essenciais da criação artística: “estranhava” a colher do mundo do banal para atribuir-lhe um novo significado. A mesma coisa faz a criança quando usa uma cadeira para brincar de trenzinho, quando mergulha o carrinho na banheira na falta de outra embarcação, ou quando faz de seu urso de pelúcia um aviãozinho.” (RODARI, 1982, p. 95)

Já, a semiótica, serve pra explicar por que as coisas são como são, pois ela nos permite estudar o signo desde seu primeiro contato com a mente – ainda como fenômeno – até se tornar um signo compreensível para nós, tornando-se parte, ou não, de nosso repertório. E nos comunicamos com o que é exterior a nós por meio de signos.

“Ao mesmo tempo que o signo é um mediador entre o homem e o mundo, o homem é um mediador entre um signo e outro signo”. (SANTAELLA, 1980, p.13)

As crianças, por não obedecerem regras de linguagem e descobrirem o mundo a todo momento, conseguem dar novos significados aos signos que, para nós, era inconcebível terem algum outro significado além do que conhecíamos.

Ora, se a todo momento, para transmitir mensagens, reunimos os signos que fazem parte de nosso imaginário para formular um discurso (contar uma história), logo, estamos criando uma narrativa, para que a mensagem seja compreensível.

E pretendo, aqui, unir as técnicas criativas de Rodari, de desconstrução do mundo como o conhecemos pelo universo infantil, e a semiótica, para auxiliar na reconstrução desse mundo. Conforme disse no início do texto, mudamos nosso discurso no processo de amadurecimento e passagem para a fase adulta e conseguimos criar consciência do processo de criação da mensagem. E justamente por termos condições de adquirir essa consciência, temos que abraçar a responsabilidade das mensagens que transmitimos ao mundo, e ampliarmos nosso repertório de signos e suas combinações.

Referências Bibliográficas

RODARI, Gianni. Gramática da fantasia / Gianni Rodari [tradução de Antonio Negrini; direção da coleção de Fanny Abramovich]. – São Paulo: Summus, 1982 – (Novas buscas em comunicação ; v. 11)  1920

SANTAELLA, Lúcia. Produção de Linguagem e Ideologia, São Paulo: Ed. Cortez, 1980

* Pablo Picasso citado em “Quando a Psicoterapia Trava – Página 69, Marina da Costa Manso Vasconcellos, Grupo Editorial Summus, 2007, ISBN 8571830312, 9788571830318 – 216 páginas

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NOTA em 25.04.2013: A citação de Rodari que menciona Hegel, logo no início do texto, tem, no livro Gramática da Fantasia, a intenção de contextualizar um cenário de nossa sociedade, da divisão de classes que posiciona o artista (podemos incluir, atualmente, o criativo da comunicação) em uma situação privilegiada, na qual a imaginação e a capacidade inventiva vêm como uma dádiva, algo que não pode ser alcançado pela massa. Rodari cita Marx e Engels na Ideologia alemã:

“A exclusiva concentração do talento artístico em alguns indivíduos e seu sufocamento na grande massa é consequência da divisão do trabalho…”. (RODARI, 1982, p. 161)

Rodari ainda complementa que “A função criativa da imaginação pertence ao homem comum, ao cientista, ao técnico; é essencial para descobertas científicas bem como para o nascimento da obra de arte; é realmente condição necessária da vida cotidiana…”. (RODARI, 1982, p. 162)

A citação de Hegel se fez necessária justamente para levar ao debate do que é, de fato, imaginação e fantasia, assuntos que serão mais profundamente analisados aqui. No entanto, essa “hierarquização” entre os termos se faz necessária, pois é a partir dela que se fortalece o debate do papel fundamental que a criatividade exerce na vida de um indivíduo e como ela é cultivada.

É praticamente impossível tratar de determinados assuntos sem questionar as convenções sociais.

Sobre Yuri Amaral

sou formado em publicidade e propaganda e atualmente curso o programa de pós graduação em estudos interdisciplinares da unila. ainda na época da faculdade empreendi alguns projetos, como uma revista, um fanzine e um evento de cultura pop japonesa. atualmente, dou aulas no curso de comunicação social de um centro universitário local, em foz do iguaçu, pr.
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